Tuesday, December 22, 2009

MicroRNAs, genes Hox e suas costelas

ResearchBlogging.orgDurante o desenvolvimento, o embrião de vertebrado passa por uma etapa de segmentação que resulta na formação dos somitos ao longo do corpo. A priori, estes “blocos” de tecido mesodérmico são morfologicamente idênticos. Entretanto, cada somito dará origem a uma vértebra específica, dependendo da sua localização no eixo anteroposterior. Isto é possível por que cada somito expressa uma combinação específica de fatores de transcrição Hox, que o confere uma identidade singular e determina, por exemplo, que vértebra este formará.

O papel dos genes Hox na determinação da identidade de segmentos em animais é bem estudado. Tanto em vertebrados quanto em invertebrados, alteração nos padrões de expressão de genes Hox podem resultar em transformações homeóticas, onde uma estrutura normalmente característica de um segmento se desenvolve em outro. Dentre os mais famosos exemplos está a mutação em D. melanogaster na região regulatória do gene antennapedia, membro da família de genes Hox, resultando na conversão das antenas em um par de patas.

Os diversos membros da família de genes Hox são expressos em regiões específicas ao longo do eixo anteroposterior e a identidade de cada segmento do corpo depende de que gene Hox este expressa. Para que este processo ocorra corretamente, pensar-se-ia que os limites entre cada domínio de expressão precisariam ser delimitados com precisão. Este porém, não é o caso e o que se observa na verdade é considerável sobreposição de expressão entre domínios de diferentes genes Hox. Por este motivo, especula-se que algum mecanismo de ajuste-fino existe para determinar onde acaba o domínio de um gene Hox e começa o de outro. Em um artigo publicado na edição de novembro deste ano na PNAS, McGlinn e colaboradores demonstram que microRNAs (miRNA) podem ser responsáveis pela ”demarcação” de domínios de expressão de gene Hox. MiRNAs, como o nome sugere, são RNAs pequenos, compostos de aproximadamente 23 nucleotídeos, que são capazes de se ligar em seqüências complementares de RNAs (geralmente na região 3’ não-codificante) e regular negativamente a expressão do gene-alvo.

Estudos anteriores mostraram que o miRNA miR-196 está localizado na vizinhança de genes Hox e que possui a capacidade (ao menos in vitro) de inibir a expressão de genes Hox. No atual estudo, os autores utilizaram pequenas moléculas (antagomiRs) para anagonizar a expressão do miR-196 e definir o papel deste miRNA in vivo. Se o miR-196 de fato antagoniza genes Hox durante a formação dos somitos, a inibição da expressão do miR-196 resultaria em expansão da expressão de algum gene Hox e possivelmente alteração na identidade de algum somito. Exatamente o resultado observado. Entre outros resultados, os autores mostram que inibição do miR-196 em embriões de galinha resulta em sutil expansão do domínio de expressão do gene Hoxb8 e também na transformação da 14 vértebra cervical em vértebra torácica (esta passa a produzir uma costela extra!).

Para aqueles que achavam que o estudo do desenvolvimento embrionário se resumiria a determinar que gene(s) formam um determinado órgão - e pensavam que esse negócio de seqüência regulatória chegou só pra dificultar a tarefa – adicione mais uma variável cabeluda à equação: miRNAs.

McGlinn E, Yekta S, Mansfield JH, Soutschek J, Bartel DP, & Tabin CJ (2009). In ovo application of antagomiRs indicates a role for miR-196 in patterning the chick axial skeleton through Hox gene regulation. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, 106 (44), 18610-5 PMID: 19846767

Sunday, December 13, 2009

A boca, ânus e os eixos do corpo: de onde eles vêm?




Até antes da teoria da evolução ter sido proposta por Charles Darwin tentamos entender como os diferentes grupos de animais são relacionados entre si e como seu Bauplan (organização corporal) evoluiu a partir de um ancestral comum. As discussões entre Étienne Geoffroy Saint-Hilaire e Georges Cuvier realizadas nos séculos XVIII e início do XIX são um grande exemplo de como os cientistas há muito tempo encontram-se debruçados sobre essa questão.

Nestes últimos 15-20 anos com o advento da Evo-Devo e particularmente com a possibilidade de se estudar organismos não-tradicionais, que se encontram em várias posições na árvore da vida, tem-se gerado novas hipóteses na difícil tarefa de saber como nosso ancestral comum hipotético Bilateral (Urbilateria) se pareceria. Para entender o que é simetria bilateral e como ela é estabelecidade é só ver posts anteriores aqui no Blog.

Duas hipóteses básicas a cerca da natureza do Urbilateria existem. A primeira hipótese é baseada em estudos moleculares feitos com organismos-modelo invertebrados (Drosophila e C. elegans) e vertebrados (zebrafish, Xenopus, um sapo e outros). Esta hipótese assume que o UrBilateria seria um organismo complexo, macroscópico, com diferentes segmentos pelo corpo (como Drosophila e nós humanos) e uma cavidade derivada do mesoderma (celoma). A segunda hipótese assume que este UrBilateria seria um organismo morfologicamente mais simples, mais parecido com uma “minhoca” dessas que você vê pela rua. Este organismo UrBilateria seria asegmentado, sem membros, sem um celoma, com desenvolvimento direto (sem fase larvar).

O principal problema para responder essa questão é que este organismo hipotético viveu a cerca de 500-600 milhões de anos atrás e até hoje não foi inventada uma máquina do tempo. Mas nós cientistas temos pelo menos algumas possibilidades para se estudar essa questão. Uma delas é o registro fóssil, mas este pode não nos responder a nossa pergunta, pois nem todos os organismos são facilmente fossilizados e também temos uma tendência natural a acharmos os fósseis de maior tamanho que os de menor tamanho. A outra possibilidade é analisar as seqüências de DNA presentes nos organismos atuais que pertencem a grupos bastante antigos na evolução e que mantiveram suas características morfológicas inalteradas ou pouco modificadas (grupos filogeneticamente basais).

Mark Q. Martindale e Andreas Hejnol publicaram este ano um artigo de revisão na revista Developmental Cell sugerindo que a segunda hipótese, de que o UrBilateria se pareceria mais com uma minhoca, seria mais provável que a primeira que propõe que o Urbilateria pareceria mais com um bicho segmentado como uma mosca-da-fruta ou conosco. Vários argumentos são apresentados pelos autores como as recentes filogenias (Ruiz-Trillo et al., 2004; Ruiz-Trillo et al., 1999; Telford et al., 2003; Wallberg et al., 2007) que indicam que o ancestral comum desse grupo de animais (Platelmintos) estaria mais próximo do UrBilateria que o ancestral comum dos Protostomos compostos pelo Ecdysozoa (incluindo insetos como Drosophila) e Lophotrocozoa (incluindo os anelídeos, minhocas,) e os Deuterostomos (incluindo os cordados como nós).

Qual é a resposta certa para a questão? Lamento informar que embora tenhamos avançado muito no entendimento de quais fatores são utilizados por organismos pertencentes aos diferentes grupos de animais ainda não temos certeza de nada (e talvez nunca teremos). Acho que a proposta dos autores de se estudar as redes regulatórias gênicas dos diversos grupos de animais existentes é excelente; e espero que nos próximos anos possamos escrever mais um capítulo nessa nossa árdua tarefa de desvendar o que aconteceu durante os 4 bilhões de anos de evolução no nosso planeta.