Tuesday, January 26, 2010

Evolução em ação: quer exemplo melhor que este?

ResearchBlogging.orgNeste mês a rede de TV americana PBS lançou um documentário sobre Evo Devo chamado What Darwin Never Knew (o que Darwin nunca soube). Vale a pena conferir. A primeira metade do documentário trata sobre aquilo que Darwin sabia durante o período em que escrevia seu histórico livro. A outra metado do programa traz exemplos de estudos que revelam o mecanismo pelo qual a evolução opera. E vários destes demonstram como genes modificam a anatomia durante o desenvolvimento embrionário.

Um dos estudos mostrados no documentário descreve o trabalho do grupo do Dr. David Kingsley, da Universidade de Stanford, com o desenvolvimento de nadadeiras em peixinhos conhecidos como sticklebacks. Este trabalho já foi assunto de matéria deste blog. Em resumo: sticklebacks marinhos possuem nadadeiras posteriores (pélvicas) modificadas, em forma de espículas, enquanto que espécies de água doce possuem a pélvis extremamente reduzida. O gene por trás desta diferença é o pitx1, que é idêntico entre as duas espécies, só que apenas os sticklebacks marinhos o expressam na pélvis. Ou seja: o mesmo gene sendo utilizado na pélvis de uma espécie mas não na de outra. Já que o ancestral destas espécies possuía pélvis, a única possível explicação é que a espécie de água doce (de pélvis reduzida) possui alguma mutação em região regulatória do pitx1.

A próxima (e mais difícil etapa) era encontrar esta região regulatória em ambas espécies e mostrar que a espécie de água doce havia desligado este DNA regulatório. E foi precisamente isto que Dr. Kingsley e sua intrépida trupe de posdocs e colaboradores reportaram na revista Science do dia 15 deste mês.

Os autores conseguiram identificar a região (locus) no cromossomo que associava com a ausência de pélvis. Este pedaço de DNA localizava-se na proximidade do gene pitx1. Em seguida os pesquisadores mostram que este pedaço de DNA, denominado de Pel-2.5kb, quando ligado à proteína fluorescente GFP e injetado em embriões de peixe, era capaz de promover a produção de GFP na nadadeira pélvica. Ou seja, a região controladora da expressão de pitx1 na pélvis havia sido encontrada!

Agora a parte mais incrível: Kingsley e colaboradores queriam mesmo era saber se poderiam reverter a evolução. Seria possível devolver aos sticklebacks de água doce o que a seleção natural havia levado embora: suas nadadeiras pélvicas? A resposta foi um ressonante sim! Ao inserir em sticklebacks de água doce uma cópia do gene pitx1 ligado à região controladora Pel-2.5kb de espécie marinha, embriões de sticklebacks de água doce passaram a produzir nadadeiras pélvicas!

A história dos sicklebacks, fruto de anos de trabalho do grupo do Dr. Kingsley, talvez seja o melhor e mais completo exemplo da evolução de um caractere (possuir ou não pélvis) em vertebrados. O passado evolutivo deste grupo de peixes é bem documentado pelo registro fóssil. Sticklebacks marinhos possuem suas nadaderias pélvicas (e dorsais) em forma de espículas para se proteger contra predadores (o documentário da PBS inclusive mostra vídeo de um peixe engolindo um stickleback e em seguida o cuspindo por causa dos espículos). Quando stickleback passaram a habitar lagos e rios onde haviam poucos ou nenhum predador, as nadadeiras pélvicas deixaram de desempenhar papel fundamental para sobrevivência do peixe, e foram eliminadas. Ao analisar o DNA de ambas espécies agora sabemos onde exatamente foi a mutação e em que tipo de sequência de DNA (regulatório). E para provar, podemos reverter o caractere morfológico ao seu estado primitivo.

Muitos outros estudos incríveis como este já foram, estão sendo e certamente continuarão a ser publicados, acumulando mais e mais exemplos ao vasto repertório de estudos que reforçam a teoria da evolução. Tanto a evolução quanto a força da gravidade operam a todo momento ao nosso redor. As forças gravitacionais escondem-se atrás de equações e as forças evolutivas atrás de vastas dimensões temporais. Por isso, nenhuma das duas é necessariamente intuitiva e a elucidação de cada uma requereu uma mente brilhante (que, a propósito, descansam lado a lado na abadia de Westminster). Não vou especular se a teoria da Evolução já é tão (ou mais) bem documentada que a própria lei da gravitação universal... Mas acho que já temos prova suficiente de sua veracidade.

Chan, Y., Marks, M., Jones, F., Villarreal, G., Shapiro, M., Brady, S., Southwick, A., Absher, D., Grimwood, J., Schmutz, J., Myers, R., Petrov, D., Jonsson, B., Schluter, D., Bell, M., & Kingsley, D. (2009). Adaptive Evolution of Pelvic Reduction in Sticklebacks by Recurrent Deletion of a Pitx1 Enhancer Science, 327 (5963), 302-305 DOI: 10.1126/science.1182213

Friday, January 15, 2010

Pegadas de tetrápodes: será?

ResearchBlogging.orgNo dia 7 deste mês, a revista científica Nature trouxe como matéria de capa as supostas pegadas de um tetrápode de 400 milhões de anos atrás. A descoberta seria de grande importância porque as pegadas são 18 milhões de anos mais antigas que qualquer fóssil de tetrápode já encontrado e 10 milhões de anos mais antigas que fósseis de transição como o Tiktaalik rosae.

Por isso, perguntei ao meu chefe, que é paleontólogo, (Neil Shubin - descobridor do Tiktaalik) o que achava das pegadas. Ele me disse: "vem aqui no meu escritório. Vou te mostrar uns artigos". Os artigos que ele me mostrou, claro, eram absoluta novidade para mim, que sou biólogo molecular. Um deles tratava de inúmeras pegadas de artrópodes datando do devoniano (+ ou - 400 milhões de anos atrás). Elas não eram muito diferentes das pegadas da capa da revista Nature, só cobriam uma área maior e eram muitas.

Em outro artigo, os autores descrevem um achado que inicialmente foi reportado como pegadas de tetrápodes, mas depois revisto, retificado e atribuído a artrópodes de mais de 400 milhões de anos atrás. Detalhe: cada pegada media cerca de 25cm de tamanho e a trilha completa das pegadas era tão grande quanto o espaço ocupado por um trilho de trem, indicando que o artrópode responsável pelas pegadas era possivelmente tão grande quanto um dragão de Komodo.

Aí eu perguntei ao Neil: "Mas no artigo da Nature, os autores mostram que as pegadas deixaram impressões de dedos". Neste momento Neil puxou outro artigo do seu computador intitulado: The presumed amphibian footprint Notopus petri from the Devonian: a probable starfish fossil. Basicamente o artigo argumenta que um fóssil previamente identificado como uma pegada (com dedos) de um anfíbio, seria na verdade um fóssil de estrela do mar! Que tal...

Por fim, Neil pegou uma réplica da pata do Tiktaalik (que mais parecia uma nadadeira) e pressionou contra um monte de areia que ele havia colocado em uma caixa em cima de sua mesa. A impressão deixada pela "pegada" do Tiktaalik também deixava marcas que lembravam dedos. Ficou claro para mim que Neil estava extremamente cético a respeito do suposto tetrápode na capa da revista. E seus argumentos eram convincentes! Fiquei então curioso para saber o que pensavam outros paleontólogos que também trabalham na área.

Michael Coates (aqui da Universidade de Chicago), que descreveu o fóssil do Acanthostega gunnari, não acredita que as pegadas em questão sejam de tetrápodes. Ted Daeshler, da Academia de Ciências Naturais da Filadélfia também acha que não. Jenny Clack, paleontóloga da Universidade de Cambridge na Inglaterra, demonstrando cautela, disse para a Science News: "pelo fato das rochas (onde foram achadas as pegadas) não possuírem fósseis, fica difícil interpretar que tipo de organismo deixou tais pegadas". Interessantemente, em matéria publicada na Folha de São Paulo, Rafael da Costa Silva, do Serviço Geológico do Brasil diz: "É muito difícil distinguir esses grupos de "peixes" dos tetrápodes primitivos, mesmo com base em ossos. Imagine com pegadas" e que "os dados não são assim tão conclusivos quanto acham os autores".

Penso que histórias como esta ensinam várias lições: mesmo que revistas científicas falhem no processo de revisão e aceite de um artigo para publicação (só o tempo determinará se este foi de fato o caso) o mais importante processo de crivo científico é mesmo o modo pelo qual a comunidade científica revisa, reflete, critica e absorve ou descarta teorias. Se as pegadas forem de tetrápodes, fósseis virão. Assim como se Darwin estivesse certo quanto à teoria da evolução, a embriologia, geologia, paleontologia e genética o corroborariam. E estas o fizeram.

Além disso, percebi o quanto é difícil para alguém fora de um campo da ciência, julgar o mérito de achados científicos. Eu trabalho em um laboratório de pesquisa de tetrápodes (porém com biologia molecular) e por conta própria não teria qualquer condição de julgar se tais pegadas são ou não de tetrápodes. O mesmo, penso eu, acontece com muitas pessoas que, sem ter treinamento em biologia evolutiva, tentam julgar se o processo de evolução por seleção natural é verdadeiro ou não. Nessas horas não existe muita alternativa, é preciso consultar aqueles que estão ativamente envolvidos no campo de pesquisa para poder formar uma opinião. Parafraseando aquele programa de TV: é preciso pedir ajuda aos universitários!



Niedźwiedzki G, Szrek P, Narkiewicz K, Narkiewicz M, & Ahlberg PE (2010). Tetrapod trackways from the early Middle Devonian period of Poland. Nature, 463 (7277), 43-8 PMID: 20054388

Draganits, E., Grasemann, B., & Braddy, S. (1998). Discovery of abundant arthropod trackways in the ?Lower Devonian Muth Quartzite (Spiti, India): implications for the depositional environment Journal of Asian Earth Sciences, 16 (2-3), 109-118 DOI: 10.1016/S0743-9547(98)00008-7

Derek E. G. Briggs, & W. D. Ian Rolfe (1983). A Giant Arthropod Trackway from the Lower Mississippian of Pennsylvania Journal of Paleontology, 57 (2), 377-390

ROĈEK, Z., & RAGE, J. (1994). The presumed amphibian footprint Notopus petri fiom the Devonian: a probable starfish trace fossil Lethaia, 27 (3), 241-244 DOI: 10.1111/j.1502-3931.1994.tb01417.x

Wednesday, January 6, 2010

Como a adaptação acontece?





ResearchBlogging.orgInteressante que muitas das questões que são um mistério desde os tempos de Darwin estão sendo exaustivamente abordadas no ano de 2009. Tudo bem, agora estamos em 2010 já, mas o artigo que vou comentar saiu na revista Science no final de 2009, 150 anos após a publicação da primeira edição de Origem das Espécies. Uma das mais importantes questões em Evo-Devo atualmente é onde ao nível molecular (do DNA) uma mutação surge, como ela é selecionada e fixada numa dada população, gerando uma nova morfologia (novo fenótipo).

O laboratório de Sean Carroll já é famoso nessa área de Evo-Devo e foi alvo de alguns posts aqui no Blog particularmente porque Carroll é um dos grandes defensores da hipótese de que mudanças no DNA REGULATÓRIO (ativa ou inibe a transcrição do DNA em RNA) são mais importantes que as modificações nas seqüências de AMINOÁCIDOS das proteínas para o surgimento de novas formas. Vários artigos do grupo de Carroll e de outros grupos nos últimos anos têm demonstrado que essa hipótese pode ser verdadeira.

O que esse estudo tem de diferente dos anteriores? Na verdade esse estudo analisa com bastante detalhe uma característica fácil de observar e com valor adaptativo: a pigmentação do abdômen em diferentes populações naturais de moscas-da-fruta. Estas moscas-da-fruta que vivem em alta altitude possuem mais pigmentação no abdômen do que as que vivem ao nível do mar, e acredita-se que este é um caractere adaptativo, ou seja, uma vez que um pedaço de DNA que promove a pigmentação surge, ele tem grande chance de ser mantido na população (selecionado positivamente).

Assim o grupo de Carroll mapeou as regiões do genoma de populações de Drosophila melanogaster presentes na África e identificou que boa parte da variação na pigmentação do abdômen dessas populações era proveniente de diferenças na expressão do gene ebony (ébano, carvão), um gene classicamente conhecido por ser importante na formação de pigmentos em drosophilas de laboratório. Isso é interessante porque teoricamente as mudanças poderiam ter ocorrido em qualquer lugar do genoma mas aparentemente algumas regiões do genoma são mais especiais do que outras!!!

Vários experimentos são importantes nesse artigo, mas eu destaco os vários experimentos que foram capazes de demonstrar ao nível de nucleotídeos do DNA (genótipos) como os diferentes abdomens (fenótipos) provavelmente apareceram. Como a distribuição geográfica dessas diferentes populações de Drosophila é conhecida, os autores puderam inclusive calcular quando cada padrão de pigmentação e cada mudança no DNA provavelmente ocorreu.

Os autores terminam o artigo com uma discussão de porque mudanças regulatórias são mais freqüentes do que mudanças na seqüência codificante de proteínas na geração de novos fenótipos. Recomendo a leitura. Acho que era isso no primeiro post do ano. Feliz ano-novo!

Rebeiz, M., Pool, J., Kassner, V., Aquadro, C., & Carroll, S. (2009). Stepwise Modification of a Modular Enhancer Underlies Adaptation in a Drosophila Population Science, 326 (5960), 1663-1667 DOI: 10.1126/science.1178357