Thursday, February 18, 2010

Os genomas das moscas e a ilusão das seqüências conservadas



ResearchBlogging.org


Em um estudo publicado em Janeiro de 2010 na revista PLOS Genetics o grupo do pesquisador do Howard Hughes Medical Institute (HHMI) Mike Eisen demonstrou o quão pouco sabemos da evolução das seqüências regulatórias, isto é, seqüências que favorecem (“enhancer”) ou inibem (“silencers”) a transcrição (DNA→RNA).

Uma seqüência regulatória, em particular um enhancer, é um pedaço de DNA contendo em geral 400-800 pares de bases de DNA (as letrinhas ATCG), contendo vários sítios de ligação (“binding sites”) para fatores de transcrição (proteínas que se ligam ao DNA).
Tudo bem, parece complicado, mas não é tanto. Vamos tentar simplificar. Muita gente lembra ou já ouviu falar do modelo chave-fechadura utilizado ao falarmos da interação entre uma enzima e substrato. Neste modelo uma enzima só funciona com o seu substrato específico e reações enzimáticas tão importantes para o funcionamento do nosso corpo dependem dessas interações. Com um enhancer a lógica é parecida: o fator de transcrição (como a enzima) só se liga a um pedaço de DNA específico (como o substrato). O que complica um pouco a nossa estória é que um enhancer é composto por vários fatores de transcrição diferentes (várias enzimas) que podem se ligar a diferentes pedaços de DNA (vários substratos). Como numa reação enzimática em que podemos medir a concentração de um determinado produto como resultado da interação enzima-substrato, a quantidade de transcrição nos diz quanto um determinado enhancer está ativo. Assim a estrutura dos enhancers é um código bastante complexo e entender como este código é formado e evolui ao longo dos tempos é um dos grandes enigmas da Evo-Devo atual.

Qual a importância de se entender as seqüências regulatórias e sua evolução? Como já discutimos em vários posts do blog, os genomas (conjunto total de DNA) de organismos multicelulares são em grande parte constituídos por seqüências potencialmente regulatórias. O que o grupo de Mike Eisen tem procurado entender nos últimos anos é como essas seqüências regulatórias são formadas e como elas se modificam ao longo dos anos (evoluem, mas não no sentido de melhoramento per se).

O modelo mais aceito na literatura para a evolução destes enhancers em moscas-da-fruta é que a região funcional do enhancer, a região do DNA em que o fator de transcrição é capaz de se ligar, seria mais conservada em seqüência do DNA que as regiões adjacentes (próximas). Assim vários grupos defendem a hipótese que uma gramática conservada (“cis-regulatory grammars”) existiria e seria produto direto da seleção natural atuando nestas regiões. A principal evidência apontada por esses grupos é a conservação destas seqüências funcionais entre as diferentes espécies de moscas-da-fruta.

O presente artigo de Eisen propõe que essa aparente gramática conservada pode ser na verdade uma conseqüência indireta dos diversos processos que um genoma, no caso da mosca-da-fruta, é submetido globalmente. Dentre estes processos a forte tendência a deleções (perdas de pedaços de DNA) nos genomas das drosófilas poderia explicar, ao menos em parte, esta aparente conservação observada nas espécies de moscas-da-fruta atuais.

Para mim a principal mensagem levantada pelo presente estudo é que as vezes nos esquecemos que o processo de mutação é randômico e que vários fatores globais observados nos genomas não necessariamente são frutos da seleção natural. Acho que isso é uma coisa meio que do ser humano, tendemos a achar que tudo que é observado tem uma finalidade, um por que. Acredito que só novos estudos podem nos ajudar a desvendar enigmas como esses..

Lusk, R., & Eisen, M. (2010). Evolutionary Mirages: Selection on Binding Site Composition Creates the Illusion of Conserved Grammars in Drosophila Enhancers PLoS Genetics, 6 (1) DOI: 10.1371/journal.pgen.1000829

Monday, February 8, 2010

Patas de camundongo, gene de anfioxo

ResearchBlogging.orgO anfioxo, parente distante de vertebrados como nós,  é um invertebrado de corpo alongado, como o de um peixe, que vive em ambientes marinhos. Ele porém não possui ossos, não tem olhos ou órgãos sensoriais complexos como os de vertebrados, não possui um cérebro propriamente dito e nem nadadeiras pareadas (peitorais e pélvicas). Alguns poderiam pensar, portanto, que estes "projetos de vertebrados" tem pouco (ou nada) a nos ensinar sobre quem somos.

Entretanto, qualquer evolucionista, ou entusiasta da evolução, sabe que todo e qualquer ser vivo guarda preciosas pistas para entendermos o que é a vida, quem somos e porque nossos corpos são do jeito que são. E o artigo de Minguillion e colaboradores, publicado em janeiro na revista PNAS, traz consigo as pistas oferecidas pelo anfioxo para entendermos porque temos braços e pernas.

A linhagem de vertebrados que nos originou sofreu um total de 2 duplicações completas do genoma, porém o anfioxo divergiu de outros cordados antes destes eventos e, portanto, possui apenas uma cópia de genes que foram duplicados em vertebrados. Muitos consideram que estes eventos de duplicação gênica são o motivo pelo qual nossa linhagem de cordados dispõe de "formas infinitas de grande beleza".

Por exemplo, acredita-se que o surgimento de nadadeiras peitorais e pélvicas, que depois deram origem a nossos braços e pernas (respectivamente), esta atrelado à duplicação de um fator de transcrição da família T-box (ou Tbx). O gene Tbx5 é o fator de transcrição que inicia a formação de membros anteriores (braços e nadadeiras peitorais), enquanto o gene Tbx4 (juntamente com outro gene chamado Pitx1) promove a formação de membros posteriores (pernas e nadadeiras pélvicas).

O anfioxo, que não possui nem membros anteriores ou posteriores, possui uma única cópia destes genes, chamada de amphiTbx4/5. A pergunta então é a seguinte: se nossos braços e pernas são consequência da ação destes novos genes, resultado da duplicação do ancestral do amphiTbx4/5, então o próprio amphiTbx4/5 seria incapaz de iniciar a formação de membros em vertebrados. Como testar isso? Minguillion e colaboradores utilizaram camundongos mutantes para os genes Tbx4 e Tbx5, que não são capazes de formar patas, e inseriram nestes o gene de anfioxo (amphiTbx4/5). E alguns poderiam pensar:  "o que um pobre gene de anfioxo seria capaz fazer em um vertebrado sofisticado como um camundongo...". Que tal patas dianteiras e traseiras?

De fato, os pesquisadores constataram que o amphiTbx4/5 era capaz de devolver aos camundongos suas patas dianteiras e traseiras, com todos os componentes anatômicos que uma pata de camundongo possui. Portanto, não há nada necessariamente especial na estrutura da proteína gerada pelos genes Tbx5 ou Tbx4 de vertebrados que as credencie para iniciar a formação de patas, ao menos quando comparadas com o amphiTbx4/5. Então, porque o anfioxo não as faz?

Os pesquisadores voltaram então suas atenções para as regiões regulatórias do Tbx4 e Tbx5. Sequências de DNA logo na vizinhança destes genes controlam o local e o estágio do desenvolvimento no qual o Tbx4 e Tbx5 serão produzidos. Em verbebrados, estes genes são "ligados" na mesoderme lateral, na região onde se formarão braços e pernas. No anfioxo entretanto, o gene amphiTbx4/5 não é "ligado" durante estágios embrionários, somente mais tarde em estágios larvais. E quando os pesquisadores procuraram por DNA regulatório semelhante ao encontrado em vertebrados, viram que o amphiTbx4/5 não os possuía.

Em conclusão, este estudo dá suporte à idéia de que muitos dos genes que usamos hoje para formar estruturas anatômicas que nossos ancestrais não possuíam, já existiam em nosso passado. O segredo por trás do surgimento de novidades morfológicas parece estar nas novas maneiras pelas quais genes são utilizados durante o desenvolvimento. Em particular, no surgimento e diversificação de sequências de DNA regulatório. E porque o anfioxo não fez patas? Talvez o próprio anfioxo responderia, parafraseando Jânio Quadros: não fi-lo por que não qui-lo!

Minguillon, C., Gibson-Brown, J., & Logan, M. (2009). Tbx4/5 gene duplication and the origin of vertebrate paired appendages Proceedings of the National Academy of Sciences, 106 (51), 21726-21730 DOI: 10.1073/pnas.0910153106