Sunday, June 28, 2009

Matéria na Folha de SP de domingo (6-28-9)

Grupo busca em fósseis e DNA origem de mãos e pés

Experimento feito por brasileiro nos EUA visa produzir membros em lampreia

Paraense de 28 anos quer saber se os genes que dão patas aos animais terrestres já estavam presentes nessa espécie primitiva de peixe

CLAUDIO ANGELO
ENVIADO ESPECIAL A CHICAGO

"Quer segurá-lo? Pode segurá-lo. Só não o deixe cair."
O paleontólogo Neil Shubin estende um pedaço de rocha vermelha que acaba de retirar de uma caixa de acrílico forrada com espuma. Sem ousar trazê-la para muito longe da gaveta onde fica guardada, aproximo o olho da peça. E os contornos do osso ficam claros. Ali, na minha mão, está um pedaço da pata dianteira do Tiktaalik roseae, um dos vertebrados fósseis mais importantes do mundo.
O próprio ato de pegar o osso fossilizado de 375 milhões de anos é possível graças ao Tiktaalik. Afinal, esse peixe que habitou a região que hoje é o Ártico canadense foi, por assim dizer, o inventor daquilo que se transformaria nas mãos e nos pés dos seres humanos. Antes dele, tudo o que havia nos animais eram nadadeiras. O Tiktaalik roseae criou as patas.
Descrito em 2006 na capa da revista "Nature" por Shubin e seus colegas Farish Jenkins e Ted Daeschler, o fóssil sacudiu o universo da paleontologia. Tratava-se de um perfeito elo perdido: um animal que mistura características de peixe e anfíbio e que pode ajudar a explicar como os animais conquistaram a terra firme, no Período Devoniano (entre 408 milhões e 362 milhões de anos atrás).
Assim como o Tiktaalik, o laboratório de Shubin na Universidade de Chicago, nos EUA, é um híbrido estranho. Ali, fósseis, moldes de fósseis e uma imensa prancheta para desenhar ossos dividem espaço com microscópios, uma máquina de amplificação de DNA, uma centrífuga e várias outras traquitanas de biologia molecular.
As pesquisas desenvolvidas ali têm um objetivo nada modesto: "Queremos entender a origem dos vertebrados terrestres e como os organismos surgem", diz o pesquisador. Para isso, ele seus colegas vasculham ao mesmo tempo os dois grandes conjuntos de evidências à disposição dos cientistas: os fósseis das criaturas extintas e o DNA das atuais.
A poucos metros de onde os restos mortais do Tiktaalik são mantidos trancados -por razões de segurança, depois que Shubin passou a receber ameaças por telefone de criacionistas furiosos-, um brasileiro se dedica a desvendar a parte genética dessa equação: o embriologista paraense Igor Schneider, 28, aluno de pós-doutorado de Shubin.
Schneider é um especialista em evo-devo, ou evolução do desenvolvimento. Essa área da biologia se dedica a estudar a maneira como os embriões se desenvolvem em busca de marcas registradas da evolução.
"É a área do futuro", conta o pesquisador. "Hoje finalmente a gente tem tecnologia para responder às perguntas relevantes -como surgiram as grandes estruturas na evolução, por exemplo."
Na semana passada, Schneider conduziu um experimento para desvendar a origem de uma dessas grandes estruturas: os chamados apêndices pareados, que resultaram nas barbatanas e nas patas. Ele foi procurá-las num lugar insuspeito: o corpo da lampreia, um peixe extremamente primitivo que não tem nadadeiras pareadas.
O cientista quer saber se o "modelo básico" dos vertebrados, do qual a lampreia é o principal representante vivo -ela consiste basicamente de um tubo com uma coluna no meio-, já possuía os genes que dão origem às barbatanas dos peixes e aos braços e às pernas dos mamíferos.
Para isso, ele injetou em embriões de lampreia uma sequência de DNA que ele isolou do paulistinha, um peixe comum de laboratório, e que, acredita, regula a ativação do gene Shh, responsável pela produção dos apêndices.
Essa sequência de DNA, conhecida como ZRS, não traz a receita para a fabricação de nenhuma proteína. Poderia ser facilmente descartada como "lixo" genômico, não fosse um detalhe intrigante: ela tem trechos virtualmente idênticos em animais separados por centenas de milhões de anos de história, como humanos e tubarões. É como se a evolução a tivesse mantido conservada de propósito, por um bom motivo.
E o motivo, acredita Schneider, é ordenar ao Shh que produza membros pareados.
"Só seríamos capazes de verificar isso procurando sinais de membros num bicho que não tem membros", diz.

Cientistas vão ao Ártico no fim do ano buscar peixe com dedos

DO ENVIADO A CHICAGO

Ninguém sabe ainda o que acontecerá com os embriões de lampreia que receberam o DNA do peixe paulistinha. No melhor dos cenários, caso a hipótese de Igor Schneider esteja certa, a sequência reguladora do paulistinha produzirá daqui a duas semanas bichos bem bizarros -lampreias com pares de barbatanas laterais.
"Pode ser que da primeira vez não dê certo, algo raro em ciência", ironiza (coisas dão errado o tempo todo em ciência).
Se der certo, será mais uma humilhação que os evolucionistas impõem à humanidade: saber que os mesmos genes que formam a mão humana, tida e havida como o suprassumo da Criação, já estavam presentes na lampreia, uma das criaturas mais detestáveis do planeta.
Seria também mais uma evidência de que as grandes transições evolutivas, que cientistas como Schneider e Shubin tentam entender, dependem menos de mutações nos genes que codificam proteínas e mais de sequências reguladoras - que até pouco tempo atrás eram chamadas de "DNA-lixo".

Peixe fora d'água
Enquanto isso, Neil Shubin e Ted Daeschler planejam para o fim do ano uma nova expedição ao Ártico em busca de fósseis.
"Quero ver um peixe com dedos", diz Shubin. Um intermediário entre o Tiktaalik e os anfíbios, que tem tudo para despertar mais fúria criacionista.
A equipe passará três meses revirando rochas de 5 milhões a 10 milhões de anos mais jovens que aquelas onde o Tiktaalik foi descoberto, mas que se formaram no mesmo ambiente: águas rasas e mornas, "como as de regiões da Amazônia de hoje". Nesses igarapés devonianos, repletos de predadores vorazes, diz Shubin, sair da água provavelmente se tornou uma estratégia de sobrevivência. "Parece que nossos ancestrais evitaram a luta."

Wednesday, June 24, 2009

Quebrando a simetria bilateral

Vertebrados, em geral, parecem perfeitamente simétricos em relação ao eixo esquerdo-direito. Em outras palavras, se você traçar uma linha da cabeça aos pés, dividindo o corpo em duas metades – esquerda e direita – observará que uma aparenta ser a imagem espelhada da outra.
Mas isso só é verdade por fora: por dentro impera a assimetria.

Coração deslocado para a esquerda, fígado pra direita, estômago para a esquerda, intestino para todos os lados! Sem falar em assimetrias funcionais como no cérebro.

A “quebra” da simetria bilateral é um tópico de intensa pesquisa na área de biologia do desenvolvimento e evolução, tanto pelo desafio que ela impõe à anatomia animal, quanto pela enigmática razão pela qual a assimetria em vertebrados, ao menos da forma como a conhecemos, foi selecionada durante a evolução.

Um embrião de vertebrado no estágio de nêurula já possui um corpo tubular com uma cabeça e o tubo neural em formação. Entretanto, neste estágio o embrião parece bilateralmente simétrico. É neste momento que antecede a formação dos principais sistemas de órgãos que o desenvolvimento embrionário encara uma difícil tarefa: gerar um embrião bilateralmente simétrico onde os órgão internos são assimetricamente posicionados.

Uma série de genes estão envolvidos neste processo, como Nodal, Pitx2, FGF8, Shh, para citar alguns (quem sabe assunto para futuros posts). Porém gostaria de direcionar o foco para um “órgão”, presente somente em vertebrados, que se forma no estágio de gástrula e desaparece logo que os órgão começam a assumir posicionamento assimétrico.
Em sapos, camundongos, e aves, este "órgão" é conhecido como nódulo, e em peixes como vesícula de Kupffer (ou VK: a imagem ao lado mostra as células da VK marcadas de verde, com cílios marcados de vermelho). Apesar da forma deste órgão variar de acordo com cada organismo, em todos eles existe um aspecto em comum: o nódulo (ou a VK) possui cílios que batem coordenadamente de tal forma que o líquido dentro do nódulo flui da direita para a esquerda e, de alguma maneira misteriosa, resulta na expressão de certos genes somente no lado esquerdo do embrião! Como resultado, estes genes coordenam o posicionamento assimétrico dos órgãos.

Vários experimentos elegantes mostram a importância do nódulo e seus cílios para o posicionamento assimétrico dos órgãos: quando o fluxo do fluido dentro do nódulo é artificialmente revertido, camundongos se desenvolvem com os órgãos epelhados. Doenças humanas hereditárias que afetam a formação de cílios e flagelos resultam em alterações na lateralidade dos órgãos. Quando um gel é injetado na VK de peixes de tal maneira que os cílios ficam imóveis, os órgãos internos não assumem posicionamento assimétrico, e o coração permanece como um tubo reto (como um cabo de guerra onde não há vencedor).

Ao mesmo tempo que este nódulo coordena a expressão de genes em um só lado do corpo, também promove a formação simétrica dos somitos (blocos de tecido que dão origem principalmente à musculatura do corpo). O modo pelo qual esta estrutura consegue gerar sinais assimétricos e ao mesmo tempo coordenar a formação simétrica dos somitos esta apenas começando a ser compreendido.

Mas qual a força que conduziu à evolução da assimetria dos órgãos internos? Talvez para melhor compactar os órgãos dentro do corpo? Porém a assimetria em sí resultou em outros “problemas” a serem resolvidos, como por exemplo a necessidade de um sistema complexo e extremamente assimétrico de veias e artérias, percorrendo os mais tortuosos caminhos, para irrigar estes órgãos dispostos de forma tão bizarra.

Outra questão diz respeito ao viés à esta conformação em particular. Se todos os órgãos fossem posicionados exatamente de forma espelhada em relação à conformação “normal”, o organismo funcionaria perfeitamente, como é o caso em algumas raras condições onde o paciente tem os órgãos invertidos (geralmente só se descobre tal condição na mesa de operação, quando o médico procura o coração no lado esquerdo e encontra no lado direito!).

Porque, então, possuir os órgãos em posição espelhada é tão raro?

Alguns acreditam que esta seja uma barreira imposta à evolução pela biofísica das moléculas que formam o cílio: as proteínas que compõem o cílio são “montadas” de tal maneira que o cílio roda para uma única direção para gerar o movimento de chicote. Por causa desta quiralidade intrínseca dos cílios, o fluxo dentro do nódulo é sempre da direita pra esquerda e pouco (ou nada) pôde fazer a evolução à respeito disso.

Diversos exemplos de assimetrias existem no reino animal e muitos não envolvem cílios. A evolução parece ter encontrado várias outras maneiras de gerar assimetria, como àquela presente nas conchas de moluscos, ou mesmo nos olhos do linguado, pois estes inicialmente são posicionados lateralmente e a metamorfose que gera a migração do olho é causada por ação hormonal.

Por fim, este é um assunto no qual trabalhei durante o doutoramento e por conseqüência tenho considerável interesse. Logo, assim que souber de novas descobertas, comentarei aqui no blog!

Friday, June 12, 2009

Cadê as pernas do peixe-boi? Pitx1 pode ter a resposta

ResearchBlogging.orgA evolução dos membros anteriores e posteriores (braços e pernas) permitiu aos vertebrados adaptarem-se aos mais diversos ecossistemas. Interessante observar que braços e pernas, apesar de utilizarem muitos dos mesmos genes para sua construção, parecem evoluir como módulos independentes, dando origem a membros anteriores morfológica e funcionalmente diferentes de membros posteriores (aves possuem asas e patas).

Outra ocorrência comum entre vertebrados, provavelmente resultante desta “modularidade “, é a redução ou perda completa de membros posteriores. Em muitos mamíferos aquáticos, como o peixe-boi (para escolher um exemplo da minha querida Belém), membros posteriores são muito reduzidos ou vestigiais.

Mas que alteração genética poderia causar a perda de membros posteriores, durante o desenvolvimento embrionário, sem afetar a formação de membros anteriores e outros órgãos? É possível identificar a alteração genética que causou a redução dos membros posteriores no peixe-boi? Essas são perguntas características da área de Evo Devo. E as respostas começaram a vir em 2004, com a ajuda de um peixinho conhecido aqui como stickleback (Teleostei, Gasterosteidae).

Os sticklebacks marinhos possuem nadadeiras posteriores (pélvicas) modificadas, em forma de espículas. As espécies de água doce, por sua vez, possuem a pélvis extremamente reduzida. Acredita-se que na espécie marinha essas “espículas pélvicas” protegem o peixe de predadores. Através de cruzamentos entre as duas espécies, os pesquisadores liderados pelo Dr. David Kingsley, da Universidade de Stanford, nos EUA, identificaram o gene associado com a redução da pélvis: pitx1 – um fator de transcrição (surpresa...).

O pitx1 já havia sido identificado antes como um gene importante para desenvolvimento de membros posteriores, e camundongos mutantes para este gene possuem patas traseiras reduzidas. Problema resolvido então! Sticklebacks de água doce também devem possuir a versão mutante do pitx1. Mas a história não é tão simples assim...

Ao analisar a seqüência do gene do pitx1 em sticklebacks de água doce, os pesquisadores constataram que esta era idêntica àquela de sticklebacks marinhos. Entretanto, quando analisaram a expressão deste gene (o RNA que ele produz), viram que o padrão era idêntico entre os dois peixes, exceto na região pélvica: sticklebacks de água doce não produziam pitx1 na pélvis. Ou seja, o gene não foi alterado, porém a expressão na pélvis foi, indicando que a mutação responsável pela redução da pélvis não altera o gene em sí, mas sim a região que controla a expressão do gene na pélvis.

Se você está achando esta história interessante (e comprida!), aguarde, pois tem mais!

O pitx1, como o nome sugere, tem um primo (para os geneticistas de plantão, um parálogo), pitx2. Este último é produzido somente no lado esquerdo do corpo e participa na definição do eixo esquerdo-direito (assunto para outro post). O curioso é que o pitx2 consegue suprir parcialmente a ausência do pitx1, porém só do lado esquerdo. Como resultado, tanto em camundongos mutantes e sticklebaks de água doce que não possuem pitx1 na pélvis, o membro do esquerdo é um pouco mais desenvolvido que o direito. Esta assimetria da perda de membros posteriores e característica da falta de pitx1, compensada parcialmente no lado esquerdo pelo pitx2. E aí entra o peixe-boi, que possuem membros vestigiais, porém o membro posterior esquerdo é consistentemente mais desenvolvido que o direito! Provavelmente o nosso peixe-boi também utilizou do mesmo artifício que os sticklebacks de água doce para reduzir a pélvis.

Recentemente, um passarinho pernambucano me contou que o grupo liderado pelo Dr. Kingsley tornará público mais um capítulo desta fantástica história. Saindo lá, sai aqui!

Shapiro MD, Marks ME, Peichel CL, Blackman BK, Nereng KS, Jónsson B, Schluter D, & Kingsley DM (2004). Genetic and developmental basis of evolutionary pelvic reduction in threespine sticklebacks. Nature, 428 (6984), 717-23 PMID: 15085123

Shapiro MD, Bell MA, & Kingsley DM (2006). Parallel genetic origins of pelvic reduction in vertebrates. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, 103 (37), 13753-8 PMID: 16945911

Thursday, June 4, 2009

Gosta de conversar? Agradeça ao Foxp2

Alguns anos atrás, se você dissesse em uma roda de geneticistas que estava pesquisando o gene (ênfase na singularidade!) responsável pela evolução da linguagem em humanos, com certeza não seria levado muito à sério.

A habilidade de linguagem é característica distintiva da espécie humana e certamente pré-requisito para a evolução de nossa cultura e civilização. A capacidade de articular pensamentos em palavras certamente dependeu de inovações anatômicas da faringe e boca, assim como do cérebro. Por essas e outras razões, qualquer pessoa imaginaria que o surgimento da habilidade de linguagem dependeria da evolução de vários genes.

Este palpite é muito provavelmente correto. Porém, muitos imaginavam que qualquer gene, quando estudado em isolamento, pouco revelaria sobre a evolução da linguagem. Este último palpite parece hoje estar errado!

Na década de 90 uma família inglesa chamou a atenção da comunidade científica, pois aproximadamente metade dos membros possuíam, entre outros defeitos, problemas em movimentos faciais e dos lábios, e a incapacidade articular palavras.

Em 2001, pesquisadores da Universidade de Oxford, na Inglaterra identificaram uma mutação associada à doença. O gene: Foxp2. O aspecto mais interessante do achado que poucos comentam: o gene é um fator de transcrição. Este tipo de proteína se liga no DNA para controlar a expressão de múltiplos genes. Ou seja, mutações no Foxp2 tem o potencial de alterar a produção de múltiplos genes, o que possivelmente explica o conjunto de defeitos presentes na família inglesa mencionada acima.

Quando comparada com a seqüência de outros primatas, a versão (haplótipo) humana do Foxp2 possui um padrão único de seqüência de aminoácidos que indica seleção positiva, ou seja: este gene esteve evoluindo rapidamente na linhagem que levou ao homem. A análise de DNA de neandertal revelou que estes já possuíam o haplótipo do homem moderno.

O tema voltou à tona pois o grupo do Dr. Svante Pääbo, do Instituto Max-Planck em Leipzig, Alemanha, gerou um camundongo onde o gene do Foxp2 foi alterado para se assemelhar ao haplótipo humano. O camundongo não saiu falando, mas exibiu alterações de comportamento, algumas alterações no cérebro, e o mais esperado: alteração na vocalização!

O Foxp2 pode não ser o “gene da linguagem”, e com certeza muito menos o “gene da gramática”, como alguns ousaram reportar. Mas certamente parece ter tido papel importante na evolução da capacidade da fala em humanos.

Recentemente, um grupo japonês gerou um macaco sagüi transgênico, contendo o gene que codifica a proteína fluorescente GFP, abrindo caminho para a transgenia em primatas não-humanos. O que aconteceria com um primata não-humano contendo a cópia humana do Foxp2?