A evolução dos membros anteriores e posteriores (braços e pernas) permitiu aos vertebrados adaptarem-se aos mais diversos ecossistemas. Interessante observar que braços e pernas, apesar de utilizarem muitos dos mesmos genes para sua construção, parecem evoluir como módulos independentes, dando origem a membros anteriores morfológica e funcionalmente diferentes de membros posteriores (aves possuem asas e patas).
Outra ocorrência comum entre vertebrados, provavelmente resultante desta “modularidade “, é a redução ou perda completa de membros posteriores. Em muitos mamíferos aquáticos, como o peixe-boi (para escolher um exemplo da minha querida Belém), membros posteriores são muito reduzidos ou vestigiais.
Mas que alteração genética poderia causar a perda de membros posteriores, durante o desenvolvimento embrionário, sem afetar a formação de membros anteriores e outros órgãos? É possível identificar a alteração genética que causou a redução dos membros posteriores no peixe-boi? Essas são perguntas características da área de Evo Devo. E as respostas começaram a vir em 2004, com a ajuda de um peixinho conhecido aqui como stickleback (Teleostei, Gasterosteidae).
Os sticklebacks marinhos possuem nadadeiras posteriores (pélvicas) modificadas, em forma de espículas. As espécies de água doce, por sua vez, possuem a pélvis extremamente reduzida. Acredita-se que na espécie marinha essas “espículas pélvicas” protegem o peixe de predadores. Através de cruzamentos entre as duas espécies, os pesquisadores liderados pelo Dr. David Kingsley, da Universidade de Stanford, nos EUA, identificaram o gene associado com a redução da pélvis: pitx1 – um fator de transcrição (surpresa...).
O pitx1 já havia sido identificado antes como um gene importante para desenvolvimento de membros posteriores, e camundongos mutantes para este gene possuem patas traseiras reduzidas. Problema resolvido então! Sticklebacks de água doce também devem possuir a versão mutante do pitx1. Mas a história não é tão simples assim...
Ao analisar a seqüência do gene do pitx1 em sticklebacks de água doce, os pesquisadores constataram que esta era idêntica àquela de sticklebacks marinhos. Entretanto, quando analisaram a expressão deste gene (o RNA que ele produz), viram que o padrão era idêntico entre os dois peixes, exceto na região pélvica: sticklebacks de água doce não produziam pitx1 na pélvis. Ou seja, o gene não foi alterado, porém a expressão na pélvis foi, indicando que a mutação responsável pela redução da pélvis não altera o gene em sí, mas sim a região que controla a expressão do gene na pélvis.
Se você está achando esta história interessante (e comprida!), aguarde, pois tem mais!
O pitx1, como o nome sugere, tem um primo (para os geneticistas de plantão, um parálogo), pitx2. Este último é produzido somente no lado esquerdo do corpo e participa na definição do eixo esquerdo-direito (assunto para outro post). O curioso é que o pitx2 consegue suprir parcialmente a ausência do pitx1, porém só do lado esquerdo. Como resultado, tanto em camundongos mutantes e sticklebaks de água doce que não possuem pitx1 na pélvis, o membro do esquerdo é um pouco mais desenvolvido que o direito. Esta assimetria da perda de membros posteriores e característica da falta de pitx1, compensada parcialmente no lado esquerdo pelo pitx2. E aí entra o peixe-boi, que possuem membros vestigiais, porém o membro posterior esquerdo é consistentemente mais desenvolvido que o direito! Provavelmente o nosso peixe-boi também utilizou do mesmo artifício que os sticklebacks de água doce para reduzir a pélvis.
Recentemente, um passarinho pernambucano me contou que o grupo liderado pelo Dr. Kingsley tornará público mais um capítulo desta fantástica história. Saindo lá, sai aqui!
Shapiro MD, Marks ME, Peichel CL, Blackman BK, Nereng KS, Jónsson B, Schluter D, & Kingsley DM (2004). Genetic and developmental basis of evolutionary pelvic reduction in threespine sticklebacks. Nature, 428 (6984), 717-23 PMID: 15085123
Shapiro MD, Bell MA, & Kingsley DM (2006). Parallel genetic origins of pelvic reduction in vertebrates. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, 103 (37), 13753-8 PMID: 16945911
Friday, June 12, 2009
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Espero o próximo post sobre a simetria bilateral! Gostei do grupo pitx!
ReplyDeleteParabéns pela iniciativa do blog. Aguardo ancioso por novas postagens!
ReplyDeleteCara, estou vendo seu blog pela primeira vez, gostei demais, vou ler e reler varias vezes e garanto que faremos fluxo de conhecimentos! parabens! caso voce tenha disponibilidade visite meu blog recem criado www.introspeccaoestudantil.blogspot.com
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