
Experimento feito por brasileiro nos EUA visa produzir membros em lampreia
Paraense de 28 anos quer saber se os genes que dão patas aos animais terrestres já estavam presentes nessa espécie primitiva de peixe
ENVIADO ESPECIAL A CHICAGO
"Quer segurá-lo? Pode segurá-lo. Só não o deixe cair."
O paleontólogo Neil Shubin estende um pedaço de rocha vermelha que acaba de retirar de uma caixa de acrílico forrada com espuma. Sem ousar trazê-la para muito longe da gaveta onde fica guardada, aproximo o olho da peça. E os contornos do osso ficam claros. Ali, na minha mão, está um pedaço da pata dianteira do Tiktaalik roseae, um dos vertebrados fósseis mais importantes do mundo.
O próprio ato de pegar o osso fossilizado de 375 milhões de anos é possível graças ao Tiktaalik. Afinal, esse peixe que habitou a região que hoje é o Ártico canadense foi, por assim dizer, o inventor daquilo que se transformaria nas mãos e nos pés dos seres humanos. Antes dele, tudo o que havia nos animais eram nadadeiras. O Tiktaalik roseae criou as patas.
Descrito em 2006 na capa da revista "Nature" por Shubin e seus colegas Farish Jenkins e Ted Daeschler, o fóssil sacudiu o universo da paleontologia. Tratava-se de um perfeito elo perdido: um animal que mistura características de peixe e anfíbio e que pode ajudar a explicar como os animais conquistaram a terra firme, no Período Devoniano (entre 408 milhões e 362 milhões de anos atrás).
Assim como o Tiktaalik, o laboratório de Shubin na Universidade de Chicago, nos EUA, é um híbrido estranho. Ali, fósseis, moldes de fósseis e uma imensa prancheta para desenhar ossos dividem espaço com microscópios, uma máquina de amplificação de DNA, uma centrífuga e várias outras traquitanas de biologia molecular.
As pesquisas desenvolvidas ali têm um objetivo nada modesto: "Queremos entender a origem dos vertebrados terrestres e como os organismos surgem", diz o pesquisador. Para isso, ele seus colegas vasculham ao mesmo tempo os dois grandes conjuntos de evidências à disposição dos cientistas: os fósseis das criaturas extintas e o DNA das atuais.
A poucos metros de onde os restos mortais do Tiktaalik são mantidos trancados -por razões de segurança, depois que Shubin passou a receber ameaças por telefone de criacionistas furiosos-, um brasileiro se dedica a desvendar a parte genética dessa equação: o embriologista paraense Igor Schneider, 28, aluno de pós-doutorado de Shubin.
Schneider é um especialista em evo-devo, ou evolução do desenvolvimento. Essa área da biologia se dedica a estudar a maneira como os embriões se desenvolvem em busca de marcas registradas da evolução.
"É a área do futuro", conta o pesquisador. "Hoje finalmente a gente tem tecnologia para responder às perguntas relevantes -como surgiram as grandes estruturas na evolução, por exemplo."
Na semana passada, Schneider conduziu um experimento para desvendar a origem de uma dessas grandes estruturas: os chamados apêndices pareados, que resultaram nas barbatanas e nas patas. Ele foi procurá-las num lugar insuspeito: o corpo da lampreia, um peixe extremamente primitivo que não tem nadadeiras pareadas.
O cientista quer saber se o "modelo básico" dos vertebrados, do qual a lampreia é o principal representante vivo -ela consiste basicamente de um tubo com uma coluna no meio-, já possuía os genes que dão origem às barbatanas dos peixes e aos braços e às pernas dos mamíferos.
Para isso, ele injetou em embriões de lampreia uma sequência de DNA que ele isolou do paulistinha, um peixe comum de laboratório, e que, acredita, regula a ativação do gene Shh, responsável pela produção dos apêndices.
Essa sequência de DNA, conhecida como ZRS, não traz a receita para a fabricação de nenhuma proteína. Poderia ser facilmente descartada como "lixo" genômico, não fosse um detalhe intrigante: ela tem trechos virtualmente idênticos em animais separados por centenas de milhões de anos de história, como humanos e tubarões. É como se a evolução a tivesse mantido conservada de propósito, por um bom motivo.
E o motivo, acredita Schneider, é ordenar ao Shh que produza membros pareados.
"Só seríamos capazes de verificar isso procurando sinais de membros num bicho que não tem membros", diz.
Cientistas vão ao Ártico no fim do ano buscar peixe com dedos
DO ENVIADO A CHICAGO
Ninguém sabe ainda o que acontecerá com os embriões de lampreia que receberam o DNA do peixe paulistinha. No melhor dos cenários, caso a hipótese de Igor Schneider esteja certa, a sequência reguladora do paulistinha produzirá daqui a duas semanas bichos bem bizarros -lampreias com pares de barbatanas laterais."Pode ser que da primeira vez não dê certo, algo raro em ciência", ironiza (coisas dão errado o tempo todo em ciência).
Se der certo, será mais uma humilhação que os evolucionistas impõem à humanidade: saber que os mesmos genes que formam a mão humana, tida e havida como o suprassumo da Criação, já estavam presentes na lampreia, uma das criaturas mais detestáveis do planeta.
Seria também mais uma evidência de que as grandes transições evolutivas, que cientistas como Schneider e Shubin tentam entender, dependem menos de mutações nos genes que codificam proteínas e mais de sequências reguladoras - que até pouco tempo atrás eram chamadas de "DNA-lixo".
Peixe fora d'água
Enquanto isso, Neil Shubin e Ted Daeschler planejam para o fim do ano uma nova expedição ao Ártico em busca de fósseis.
"Quero ver um peixe com dedos", diz Shubin. Um intermediário entre o Tiktaalik e os anfíbios, que tem tudo para despertar mais fúria criacionista.
A equipe passará três meses revirando rochas de 5 milhões a 10 milhões de anos mais jovens que aquelas onde o Tiktaalik foi descoberto, mas que se formaram no mesmo ambiente: águas rasas e mornas, "como as de regiões da Amazônia de hoje". Nesses igarapés devonianos, repletos de predadores vorazes, diz Shubin, sair da água provavelmente se tornou uma estratégia de sobrevivência. "Parece que nossos ancestrais evitaram a luta."