Thursday, May 21, 2009

Ida: um fóssil vs. a mídia

Nada a respeito deste fóssil é ordinário.

A vida de Ida, o mais completo fóssil de primata encontrado até então, termina às margens de um lago vulcânico em uma floresta paratropical no Eoceno, aproximadamente há 45 milhões de anos. Ali começa a saga de um fóssil que, após uma seqüência de circunstancias extraordinárias, torna-se peça central de uma orquestrada cobertura jornalística raramente rendida a um achado paleontológico.

Entre 1971 e 1985, a atividade de empresas de prospecção de petróleo que trabalhavam em um sítio em Messel, Alemanha, resultou na exposição de sedimentos contendo fósseis. Quando a prospecção terminou, o sítio passaria a ser utilizado como área de depósito de lixo. Neste meio tempo, paleontólogos iniciaram escavações na área, mas a urgência em concluir os trabalhos de coleta comprometeu a qualidade e integridade dos fósseis.

O fóssil de Ida, fragmentado em duas partes, terminou nas mãos de um colecionador. Este, por sua vez, vendeu a parte substancialmente menos conservada e completa à um museu em Wyoming, EUA, alegando que este era o fóssil completo. Para piorar a situação, partes do fóssil que foi para o museu foram alteradas para fazê-lo parecer mais completo. Somente em 2000, foi descoberto que o colecionador havia retido a metade mais preservada do fóssil. Em 2007, o museu de história natural de Oslo comprou a metade do colecionador, e finalmente, paleontólogos puderam dar início aos estudos que culminariam na publicação da descoberta de Ida.

Mas a tortuosa saga de Ida ainda não estava completa.

Quando uma descoberta paleontológica é realmente revolucionária ou marcante, é de costume que esta seja publicada nas revistas Science ou Nature, as mais lidas e respeitadas revistas científicas de nossa época. Ida foi “publicada” na revista PLOS One, que tem um fator de impacto dez vezes menor que Science ou Nature. Entre os pesquisadores envolvidos na descoberta de Ida estão paleontólogos sérios e importantes como Philip D. Gingerich, famoso pelos fósseis de ancestrais de baleias. Os autores sabem que Ida não representa um elo entre macacos e humanos e nem sequer sugerem que Ida possa ter sido nossa ancestral direta.

Ida é um fóssil extremamente bem preservado que ilumina aspectos relevantes sobre paleobiologia, morfologia e filogenia dos primatas do Eoceno. Mas o museu de Oslo queria algo mais de Ida (talvez para compensar os custos da aquisição do fóssil), e então, iniciou-se um grande espetáculo jornalístico envolvendo o Museu Americano de História Natural, History Channel, um filme a ser lançado, um livro, um website e cobertura televisiva da rede de TV ABC. Todo este esforço dedicado para vender a idéia de que Ida é o “elo perdido” entre humanos e macacos.

Esta cobertura jornalística presta um absoluto desserviço ao esforço coordenado dos últimos anos pela comunidade científica de divulgar a teoria da evolução ao público geral. A maioria dos paleontólogos concordam que Ida não é um elo perdido e que a atenção da mídia é desproporcional e indevida. Já consigo até imaginar criacionistas de plantão apontando esta incongruência como exemplo de que cientistas não concordam entre si, que tentam exagerar a relevância de seus achados e que achados paleontológicos anteriores e que estão por vir sofrem do mesmo mal.

Enfim, Ida resistiu às mais duras intempéries por 45 milhões de anos, para nos contar uma bela história de (talvez) primos distantes, porém não resistiu às pressões de uma força mais devastadora: a voracidade da mídia.

1 comment:

  1. Igor,

    Parabéns pelo blog, um show de divulgação científica!

    Abraço,
    Allysson

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